Ativismo judicial ou salvaguarda democrática? Os novos limites da propaganda eleitoral digital no Brasil 

Contexto Geral 

No dia 1o de março de 2024, o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil publicou 12 resoluções que regerão as eleições de 2024, destinadas a eleger os prefeitos e vereadores dos 5.568 municípios do país para o termo 2025-2028. 

As resoluções eleitorais brasileiras são normativas emitidas a cada processo eleitoral e têm o objetivo de regulamentar a legislação federal sobre eleições, (artigo 105 da Lei das Eleições), prestando-se a adequar normas gerais a contextos específicos. Tratam de diversos temas, tais como pesquisas eleitorais e registros de candidaturas. Fazem consignar, por exemplo, o calendário que regerá as atividades do ano, e os valores atualizados para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha. Tendo em vista que são oriundos de um órgão do poder judiciário, compreende-se que esses dispositivos não devem trazer inovações legislativas. O presente texto aborda alguns dos pontos mais relevantes da Resolução nº 23.732/2024, sobre propaganda eleitoral, que busca acomodar as regras que regem os atos de campanha às novas realidades do ambiente digital. 

 

Uma nota sobre processo

Antes de adentrar no mérito da norma em si, é importante fazer uma breve nota sobre as formalidades da redação e aprovação das resoluções do TSE. Esse processo é conduzido pelo gabinete da vice-presidência do Tribunal, e é sempre precedido por publicação de minutas dos textos. Essas primeiras versões são submetidas a audiências públicas, momento em que o TSE recebe contribuições escritas e orais de diversos setores da sociedade sobre os dispositivos em questão. Após receber os aportes, o gabinete redige os textos finais e os conduz para votação do plenário. Quando aprovadas, as normativas são publicadas e já valem para o próximo pleito. 

 

As particularidades sobre o processo de 2024 

Conforme dita a tradição, em 2024, o TSE publicou minutas dos textos das resoluções e promoveu audiências públicas para receber comentários e sugestões das entidades interessadas de todos os setores. Segundo o próprio Tribunal, as sessões bateram recorde de participação. Entre organizações da sociedade civil, órgãos do setor público e equipes de plataformas digitais, o processo contou com 80 contribuições orais e 945 escritas. 

Ocorre que, quando o texto final foi publicado, as entidades que engajaram no processo das audiências públicas foram surpreendidas com um dispositivo que não constava das primeiras versões. Em meio a outras inovações, o artigo 9º-E trouxe polêmica mudança no regime de responsabilidade de intermediários durante o processo eleitoral. Essa e outras alterações estão descritas abaixo.

 

Pontos relevantes do novo texto sobre propaganda eleitoral no âmbito digital

Mudança no marco de responsabilização de plataformas intermediárias – Artigo 9º-E

Conforme mencionado, o dispositivo mais controverso da resolução é o 9º-E, que alterou o regime de responsabilização das plataformas intermediárias estabelecido pelo Marco Civil da Internet (MCI). A redação do artigo 19 do MCI estabelece que as plataformas só responderão civilmente por conteúdos publicados por terceiros caso descumpram notificação judicial de remoção, sob a lógica de evitar monitoramentos e remoções indevidas por parte dos provedores. Além disso, a própria Lei das Eleições, em seu artigo 57-F, repete os termos do MCI, reproduzindo seu modelo de responsabilidade para a propaganda eleitoral.

O artigo 9º-E, no entanto, inaugura a possibilidade de responsabilização civil e administrativa dessas empresas quando não promoverem a retirada imediata de cinco grupos de conteúdos considerados como «casos de risco». Em resumo, (i) condutas antidemocráticas, (ii) divulgação de desinformação, (iii) ameaça à integridade das instituições e seus servidores, (iv) discurso de ódio, (v) descumprimento da obrigação de rotular conteúdos de inteligência artificial, trazido pela própria resolução.

O dispositivo preocupou partes interessadas na discussão, principalmente por duas razões:

  1. A primeira delas, o fato de que é uma instrução normativa emitida por um Tribunal que contraria expressamente leis federais, no caso, a Lei das Eleições e o Marco Civil da Internet. O condão das resoluções da Justiça Eleitoral é regulamentar dispositivos já existentes, e não modificar parâmetros estabelecidos pelo poder legislativo. Não podem coexistir dois regimes de responsabilização de intermediários no ordenamento brasileiro.
  2. Além disso, mencionando sua aplicação prática, a consequência da resolução é justamente o que o Marco Civil tenta evitar: a censura privada por parte das plataformas em questão. Uma vez que incorram no risco de responsabilização civil e administrativa, as empresas poderão optar pela via da segurança e preservação de seus próprios serviços e operação, em detrimento da liberdade de expressão de seus usuários, bem como da livre circulação do discurso. Essa é uma consequência perversa da resolução, porque incentiva os provedores a agirem como curadores do debate público, e, ainda, em período eleitoral, quando a veiculação de conteúdo, sejam notícias, propagandas políticas, opiniões ou outros, atinge o ápice de seu valor democrático. 

 

Outros dispositivos da resolução 

Além da mudança no regime de responsabilidade, a Resolução nº 23.732/2024 trouxe diversos dispositivos com novas disposições e obrigações para os candidatos, partidos e plataformas. O artigo 9º-C, por exemplo, traz para o ordenamento a proibição expressa de difusão de conteúdos de desinformação, com redação nos seguintes termos: «fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral». O artigo 9º-C § 1º, por sua vez, proíbe especificamente o uso deep fakes, conceito que define como «conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia.»

O artigo 9º-D apresenta vedação expressa ao patrocínio de conteúdo que contenha desinformação nas redes sociais. O dispositivo é relevante porque a legislação brasileira autoriza a realização de propaganda política paga em plataformas digitais (artigo 57-C da Lei das Eleições) mediante a figura do «impulsionamento de conteúdo». Além disso, o mesmo artigo prescreve diversas obrigações para as plataformas, tais como a elaboração de termos de uso que busquem reduzir a circulação de desinformação, implementação de canais de denúncia, publicação de relatórios de transparência que divulguem ações tomadas para aprimorar sistemas de recomendação de conteúdo, realização de avaliação de impacto dos serviços sobre integridade eleitoral, entre outros. 

A resolução também traz mudanças para a inteligência artificial. O artigo 9º-B regulamenta seu uso em campanhas eleitorais determinando a rotulagem explícita quando houver uso da ferramenta. Determina, por exemplo, que peças de áudio e vídeo devem vir com aviso prévio do emprego da tecnologia, e obriga a utilização de marcas d’água e audiodescrição em imagens e vídeos. A resolução traz, ainda, exceção à aplicação de tais rótulos, em casos de ajustes destinados à melhoria da qualidade da imagem ou som, à produção de identidade visual e marcas, e a recursos de propaganda comumente utilizados em campanhas, como montagens em fotografias.

Por fim, a normativa traz avanço de transparência quando inaugura uma biblioteca pública de anúncios, repositório atualizado que compila, em tempo real, as peças de propaganda, o período de vigência do anúncio, os valores e as características dos usuários atingidos pela publicidade contratada. Até o momento, salvo as declarações de gastos de campanha, nas quais os candidatos informam quais foram seus dispêndios no período eleitoral, não havia instrumento que revelasse informações sobre alcances e audiências desses posts patrocinados. 

 

Conclusão

A publicação Resolução nº 23.732/2024 gerou amplos debates entre os diversos atores que integram a discussão de regulação de plataformas e sua interseção com eleições no Brasil. Por um lado, atende pautas antigas da sociedade, trazendo obrigações de transparência para as plataformas, como é o caso dos repositórios de anúncios, onde o eleitorado poderá acompanhar os valores despendidos em propaganda nas plataformas pelos candidatos e partidos. Além disso, traz uma primeira abordagem regulatória à inteligência artificial, com disposições razoáveis sobre, por exemplo, a necessidade de rotular conteúdos que utilizem a ferramenta. 

Por outro lado, insere no ordenamento regra que tem o potencial de ferir o direito à liberdade de expressão na internet, gerando mais dúvidas do que certeza e segurança jurídica. Além disso, cruza linhas perigosas da competência de um órgão do poder judiciário para trazer inovações legislativas que vão de encontro a preceitos federais. Ainda que o desafio de combater a desinformação tenha enorme dimensão, não pode dar margens à flexibilização de processos e leis federais. 

É de bom tom lembrar, aliás, que desde 2020, o Brasil vive contínuo processo de discussão de projeto de lei (PL 2630/2020), que busca atualizar o ordenamento de regulação do ambiente digital, trazendo diversas obrigações de transparência e ações sistêmicas para promover espaços seguros, plurais e diversos para a expressão. Por mais respeitáveis que sejam as intenções do TSE, e por mais duradouro e complexo que seja o processo legislativo, é neste poder que residem as capacidades e autoridades para emitir regulações desta natureza, e é de lá que deve sair um ordenamento robusto, legítimo e efetivo para lidar com os desafios apresentados pelo ecossistema digital.